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Memórias de um fígado

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24abril 2018
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Empenhado em aproveitar uma vida dissoluta de intermináveis e efêmeras noites de prazer, ele tratou de me ingressar (desde o colegial) a ingerir doses pesadas de bebidas alcoólicas…

No prefácio da comprovação da minha sobrevivência tinha de tudo, ou melhor, eu engolia e suportava tudo: começava nos esquentas (com cervejinhas) que antecediam a farra promíscua de uma noite desperdiçada de sono, indo parar nas vodkas, nos bomberinhos, nas catuabas e nos conhaques vendidos ilicitamente pelas barraquinhas dos ambulantes nas ruas.

Ao final de uma noite incessante de alcoolismo eu tinha absorvido até chiclete e papéis de cheeseburguer, pasmem, tamanha era a insanidade mental do meu dono que, ao mesmo tempo em que me afogava em destilados, tentava compensar-me com Engov, Epocler e água quando chegava em sua casa.

Acho que eu deveria ter sido mais respeitado durante minha existência, sabe? Eu me dou o respeito e me acho o tal. Não sou um objeto qualquer e muito menos passivo de troca, aliás, isso ainda é raro de se ver! Sei que sou feio e roxo, mas também pudera, como ser boa pinta diante de amigos hediondos como vesícula biliar e abdômen?

Passei anos sendo tratado como se fosse uma prega do ânus e, assim como ela, só se dará valor quando perder. Gostaria de ter nascido dentro de um telemarketing ou de um atendente de SAC, assim minha dieta se resumiria a engolir sapos e nada mais!

E já que estou desabafando, vou dizer outra coisa (tão injusto quanto o que meu portador faz comigo). Vocês sabiam que o coração leva a fama das minhas funções? Quem disse que a expressão “assim você me mata do coração” é verdadeira?

Esse palerma metido a poeta não tem nada a ver com isso, quem produz endorfina aqui sou eu! Eu que faço você ter prazer quando devora uma barra de chocolate ou se acaba em uma torta holandesa. Sou eu quem te dá a noradrenalina, a dopamina, a serotonina e por ai vai… Seu ingrato!

Os anos se passaram e os anos me esgotaram. Hoje devo ter uns 40 anos de idade com funcionalidade de 70 anos. Me sinto dilacerado, debilitado e ensanguentado. O pragmatismo e a inércia do dono desse corpo venceram minha esperança, porém, algo me reconforta: se tenho 40 anos com jeitinho de 70, imagina o cara que me carrega todos os dias?

Você não consegue me ver, mas hoje consegue mensurar a dimensão do teu sofrimento através das minhas reclamações a se espalhar por todo o seu corpo. E se isso te serve de consolo, ao menos você carrega um aprendizado deitado nessa maca:

O mundo não fecha os olhos, muito menos pára para cicatrizar teus erros infames e ininterruptos de bebedeira e boemia.

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